Não foi Lula que se desviou, foi o poder que o mudou, diz o sociólogo José de Souza Martins

Guilherme Azevedo*
Do UOL, em São Paulo
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  • Simon Plestenjak/UOL
    O sociólogo José de Souza Martins, em entrevista no departamento de sociologia da USP
    O sociólogo José de Souza Martins, em entrevista no departamento de sociologia da USP
José de Souza Martins estava disposto a falar. A entrevista a seguir durou 117 minutos exatos. Poderia ter durado muito mais, pois não faltou prontidão a esse professor e pesquisador, que transformou os estudos sociológicos no Brasil com abordagens criativas e corajosas, arriscando deixar-se à margem para poder ver melhor.
Suas investigações renderam dezenas de livros, alguns já clássicos da sociologia, como os sobre o subúrbio, de onde ele veio e conhece muito bem, além da honraria de professor emérito da USP (Universidade de São Paulo), onde lecionou por cerca de quatro décadas.
Na entrevista, feita debruçada sobre uma longa mesa oval de madeira avermelhada de uma sala do departamento de sociologia da USP, Martins vai ao Brasil profundo, da margem, à estrutura mais funda do pensamento.
"Pensamos às vezes como alguém lá do século 17. E mascando chiclé, tomando coca-cola e comendo hambúrguer no McDonald's", descreve.
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Martins rememora um encontro antigo com Luiz Inácio Lula da Silva, quando o ex-presidente era só um sindicalista latino-americano sem dinheiro no banco e queria aprender sobre a Amazônia e a questão agrária. Pediu então uma aula ao sociólogo.
"Lula era o aluno que gostaria de ter tido aqui na universidade. Muito inteligente", elogia. Sobre a trajetória do líder popular, hoje condenado pela Justiça em segunda instância, pondera: "Não foi Lula que se desviou, foi o poder que o desviou". E define: "O poder é maléfico".
Leia os melhores momentos dessa entrevista:
UOL - Vamos começar pelo seu modo de fazer sociologia? Foram vários temas [estudados], movimentos sociais, subúrbio, questão agrária, a indústria, os operários, a violência dos linchamentos, entre outros. O que te motivava a pesquisar? O que dava o brilho nos olhos para se entrar na pesquisa? E tinha também o seu modo particular de valorizar o cotidiano, aquilo que talvez fosse desimportante para muitos.
José de Souza Martins -- Eu tive a sorte de ser aluno no curso de ciências sociais no tempo em que a influência da missão francesa ainda era muito forte [um grupo de professores franceses foi contratado para as atividades docentes iniciais da USP, que foi inaugurada em 1934]. O primeiro professor de sociologia aqui na faculdade foi o Claude Lévi-Strauss [1908-2009], que depois se tornaria o grande etnólogo. Aliás, as grandes descobertas etnológicas do Lévi-Strauss foram feitas no Brasil. O estruturalismo nasceu de conversa dele com um xamã no norte do Mato Grosso, narrando um mito para ele e aí ele vê, putz!, é uma dica epistemológica. Era uma coisa que revolucionava tudo. Você tem um bom ouvinte e pesquisador e um bom informante, que é um xamã, uma figura dona... que é um intelectual, enfim, do grupo é sorte. Aí ele resolveu ir embora para os Estados Unidos e veio para o lugar dele o Roger Bastide. Que foi um grande achado da universidade, grande figura. E ele é que faz o Florestan Fernandes, que fez a minha geração. Fez Fernando Henrique, Ianni, Marialice  Foracchi [1929-72], Maria Sylvia de Carvalho Franco, e eu e a minha turma, da terceira geração.
Simon Plestenjak/UOL
Era um pessoal que tinha uma coisa que estava muito no Bastide: o Brasil era uma mina de informação sociológica na comparação com a Europa, por exemplo. Bastide disse uma vez uma coisa do tipo: "A Europa está saturada de razão". Na verdade, o grande mundo sociológico não está nesse âmbito, está fora dos esquemas, da racionalidade. Ele vai se interessar pela cultura negra. Tem um pequeno trabalho dele sobre sonhos que é primoroso. Fez um pequeno banco de sonhos de negros. Ele se interessou pela cultura negra, se tornou filho de santo. Ele era protestante, um huguenote, que vai para o lado oposto para vasculhar o inconsciente coletivo. O primeiro curso que ele deu aqui foi de sociologia e psicanálise.
Nesse banco de sonhos, ele descobre uma coisa importante: a cor da pele não diz que uma pessoa é negra. Uma estrutura profunda no inconsciente dela é que pode dizer isso. Porque todo o período colonial foi um período de cristianização do escravo e de demolição de todas as referências culturais dele. A ideia foi apagar da memória dele a alma da tradição, da nação, do grupo de origem dele. Isso eles não conseguiram fazer com todo mundo. Então, o negro de verdade é o negro que sonha, quando está dormindo, a partir de parâmetros, de matrizes e referências que são dos ancestrais. Ele conversa com os ancestrais no sonho. E os ancestrais são fundamentais nas culturas negras, porque são eles que interpretam, que dão pistas de conduta, quer dizer, existe uma alma negra que vem dessa tradição. Então, negro é quem sonha como negro, o fato de a epiderme do sujeito ser negra não é suficiente, já é uma outra negritude, uma negritude moderna, que não tem nada a ver com aquela.
O senhor compartilha dessa ideia também?
Compartilho. Eu trabalho com as estruturas profundas. Eu não posso explicar linchamentos [justiçamentos populares] se eu não lidar com essa ideia, não só em relação ao negro, mas em relação ao branco também. Quando você vasculha os indícios dessa profundeza de referência, se descobre, no caso dos linchadores, que se orientam por uma mentalidade que foi gestada pelas Ordenações Filipinas [código jurídico que vigorou no período colonial] e pela Santa Inquisição [perseguição violenta feita pela Igreja Católica em nome do combate à heresia, entre os séculos 16 e 18, no Brasil]. A ideia da vendeta [vingança], você de preferência queimar o acusado vivo, que é isso que se faz nos linchamentos.
Existe um ser arcaico no nosso inconsciente que continua muito ativo mesmo no comportamento moderno.
Isso me interessa muito. Isso significa que a modernização, essa ideologia oficial modernizante etc., não funcionou, não deu certo. Nós continuamos divididos em tudo. Até na política somos arcaicos. Você não vê? Todos os dilemas de agora são de tipo oligárquico, coisas do século 18. As pessoas governam em nome de um passado residual que parasitou a consciência delas, a identidade delas, mesmo do eleitorado. Não estou dizendo dos políticos só, eles também.
O discurso moralizante de certa forma tentou desmerecer talvez uma tradição?
Ele desconheceu o que nós somos. Nossos políticos desconhecem o que somos.
O que nós somos, alguns elementos, por exemplo?
Somos arcaicos, sem ser propriamente uma tradição, como na Inglaterra ou na França ou na Itália. Somos vítimas do que sobrou dos vários passados que tivemos. Pensamos às vezes como alguém lá do século 17. E mascando chiclé, tomando coca-cola e comendo hambúrguer no McDonald''. É uma colagem. Somos uma colagem de visões de mundo, de orientação, nós não vamos chegar a lugar nenhum com isso. Essa é a verdade.
Somos retalhos, um pensamento retalhado, figuras retalhadas. Mas com isso não se forma uma colcha, um dia? Ou com que se forma essa colcha? Ou se não se forma, também?
Colcha nós já somos. Somos uma colcha de retalhos.
Mas cobre, não é?
Só cobre. Contra o frio etc. Mas você não tira um projeto de nação de uma fragmentação tão grande. Nós não temos um rumo. Porque nossa modernização é superficial, historicamente. Começa com a República superficial. A República foi um chute. Se você examina os detalhes do dia da Proclamação, como a coisa foi, tem vontade de chorar. Não proclamaram República nenhuma. Não foi nem sequer um golpe de Estado. Uma coisa de um primarismo espantoso. Aquela imagem do Deodoro [da Fonseca] com a espada proclamando, isso não aconteceu. Eles [os proclamadores] não souberam lidar com padrões de civilidade [a começar do tratamento impróprio e desumano dado à família real, segundo Martins]. É uma República incivilizada a proclamada dia 15 de novembro. Uma coisa de improvisação.
O Brasil [da época] era muito Rio de Janeiro, o governo estava ali. E as províncias estavam nas mãos das oligarquias, não tinham nada a ver com nada. O que aconteceu? Proclamaram a República, botaram uma infraestrutura em cima, formalmente republicana, mas o resto do país continuou igual. O clientelismo político, troca de favores, isso até hoje.
Simon Plestenjak/UOL
E houve Canudos [Guerra de Canudos, 1896-97].
Canudos foi um brutal equívoco. Não tinha revolução monarquista nenhuma lá. A monarquia de Canudos era a monarquia do divino espírito santo. Vem do joaquimismo, que não tem nada a ver com a monarquia política, nada, nada, nada. Gioacchino [ou Joaquim] da Fiore, século 12, na Itália, faz uma releitura da Bíblia, ele é um monge cisterciense e descobre que é possível encontrar na estrutura da Bíblia não dois testamentos, mas três. O Velho Testamento, o Novo e o Novíssimo. Cada testamento corresponde a um ente da Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E cada testamento corresponde a uma etapa da história. Há uma concepção difundida na sociologia de que Gioacchino da Fiore foi, na verdade, o homem que estabeleceu as bases da moderna concepção de história. Quer dizer, o mundo não é parado. O tempo do Pai, o tempo do Filho, o tempo do Espírito Santo, cada tempo vai se esgotando, tem a sua finitude e vem um novo tempo.
E o tempo do Espírito Santo, que era o tempo iminente no fim do século 19, havia muita crença quanto ao fim do milênio, se está chegando ao último século do milênio e aquele pavor, porque vai vir um cataclisma e vai surgir uma nova era, que é a era do Espírito Santo. Que é uma era de Justiça, paz, fartura, alegria. Existe também uma tradição popular joaquimista, que é a das folias do divino, a festa do divino. Canudos é uma grande festa do divino, não tem nada a ver com política. Coincidiu de acabar a monarquia e o povo estar reunido lá. Eram grupos que faziam caridade, reconstruíam igrejas em ruínas, que era o caso de Canudos, e vão se aglomerando e se estabelecendo lá.
Queria pegar um pouco do modo como o senhor trabalha, que é a coisa da pesquisa de campo, que eu, como jornalista, também sempre brigo por isso, [contra] o jornalismo de gabinete, ou só o estudo pelo estudo. O senhor poderia falar um pouquinho da obrigatoriedade de estar no lugar, de conviver com as pessoas?
Os livros são importantes como referências teóricas, eventualmente como referências equivocadas. Porque um dos trabalhos da ciência é fazer a crítica do conhecimento, as inconsistências dele. O campo [de pesquisa] pode ser o arquivo histórico, ou pode ser o campo mesmo, você vai para o mato.
Eu fiz pesquisa na Amazônia. Quando começou a entrada na Amazônia, com o regime militar, a frente de expansão com muito dinheiro do governo, os incentivos fiscais etc., percebi que ia arrebentar com ela. Onde estavam populações indígenas nem sequer contatadas. A última fronteira do mundo. Larguei tudo aqui e fui para lá, em 1975. Quase sem dinheiro. Resolvi estudar primeiro os fluxos migratórios do pessoal que se deslocava, dia e noite tinha gente saindo do Paraná, de Santa Catarina, Minas Gerais, Espírito Santo em direção à Amazônia. Era um êxodo de populações rurais indo para lá. Faço a pesquisa cobrindo sozinho uma área que ia da pré-Amazônia maranhense ao Acre e Rondônia. Eram alguns lugares, uma pesquisa amostral. E aí escrevo o livro "Fronteira'. Ali era o limite da humanidade, ela acabava ali.
Bruno Kelly/Reuters
Apreensão de madeira ilegal em Apuí (AM)
Desde a sua ida à Amazônia, algumas questões se exacerbaram, como a exploração econômica pelos fazendeiros, a madeira etc. Como o senhor observa a Amazônia, hoje?
Mudou o grau de interferência e de problema. Houve um enorme desmatamento, a questão da madeira ilegalmente extraída. É um lugar de pirataria. Falar que isso é capitalismo é bobagem. Capitalismo é uma coisa completamente diferente, é racional. Não tem como haver um capitalismo irracional, que destrói as bases da sua própria existência. Isso não é capitalismo, é burrice.
O que nós temos hoje na Amazônia, numa escala muito grande, e eventualmente em outros lugares do Brasil, é uma economia burra, que destrói aquilo que é fundamental para que ela se desenvolva e progrida. Então você tem trabalho escravo (já tinha naquela época), que é absurdo. Tem a devastação da mata, que é outro absurdo.
Não é necessário destruir o país em nome do lucro de grupos minoritários que nem sequer são grupos empresariais. Você pode preservar a Amazônia e fazer desenvolvimento econômico. As nações indígenas são bibliotecas eruditas sobre o que é o mundo natural, e esse pessoal está sendo tratado como bicho. Você tem um índice de suicídios entre os Kaoiwá que é absurdo, uma autoimolação causada pelo branco. Nós estamos acabando com essa nossa biblioteca. O Brasil não teve uma biblioteca nacional, a Biblioteca Nacional foi aquela que Dom João 6º deixou aqui no Brasil, mas nacional mesmo não tem nenhuma. As populações indígenas são nossa Biblioteca Nacional, dessa parte da informação etnológica e cultural. A informação está aqui. Porque o que ainda há para descobrir, na área de humanas, está no Brasil, eventualmente em algum outro país, mas aqui em abundância.
O senhor acha que acontece um desperdício, uma depreciação da nossa própria condição, tem a coisa da ideologia, que deve atuar de uma forma, aquilo que vem de fora é melhor, as ideias que estão aí circulando mais. Não tem ainda esse componente meio Nelson Rodrigues, da alma nacional e os vira-latas...
Nós temos ainda mentalidade do colonizado. A gente gosta de ser colonizado. E não é esquerda e direita, veja aqui, os jovens sonham em ir para os Estados Unidos, a França etc. e passam a ver o Brasil a partir de uma perspectiva que é totalmente estranha ao que somos, em vez de construir uma interpretação do Brasil a partir do que temos para dizer. Claro que tem uma força lá de fora, os pesquisadores estrangeiros, mesmo os brasilianistas, que nos veem nessa perspectiva. Não estou dando uma de patriota bobo, que não sabe o que está falando. Quer dizer, nós estamos jogando fora uma fonte preciosa de informação sobre um mundo novo e alternativo que está contido na nossa realidade e nós não sabemos expor.
Aí talvez estivesse a liga da colcha de retalhos.
Mas não liga, esse é o problema. Henri  Lefebvre, que é um sociólogo francês que já morreu [1901-91, um dos grandes mestres de Martins], é mais criativo nesse sentido. Ele fala que a sociedade é dominada por poderes e a única forma de enfrentar os poderes de maneira sociologicamente criativa é tentar ver como se dá a coalizão dos resíduos, como eles se juntam historicamente, se num certo momento promovem aquele susto que vai despertar nossa consciência: "Pô, nós podemos construir um país". Mas a gente não tem mediações.
A esquerda brasileira é muito deficiente de formação teórica. E a direita é maliciosa, voraz e incompetente, também não vai levar ninguém a lugar nenhum.
Nós não temos mais grandes referências teóricas para sair desse buraco. A universidade não está fazendo isso. Foi possuída por grupos ideológicos, mas de fato existe veto a você ir numa certa linha de interpretação.
Essa tua postura talvez mais independente, tem uma coisa periférica, a vantagem de ser periférico, o senhor já comentou isso algumas vezes.
A margem. A grande mina de inspiração e de informação para se entender um país como o Brasil. A margem.
A margem significa que existe um centro...
O centro foi possuído pelo poder. Diria, pelos poderes. Porque tem não só o poder da República, mas também os poderzinhos, que são os pequenos grupos que querem mandar nos outros, que são donos da verdade, do politicamente correto. Não sabem nada sobre o Brasil, mas são os donos. Então o poder está no centro. E o centro não é o geográfico só, é um centro de poder. É por isso que faço pesquisa na Amazônia, no subúrbio, fiz uma trilogia sobre o subúrbio, porque o subúrbio fala muito mais sobre as nossas contradições e dificuldades e as nossas possibilidades, que é o que me preocupa, do que o centro, porque o centro foi tomado e ocupado pelos poderios. E portanto não é daí que vai surgir uma informação. O subúrbio é muito mais criativo historicamente do que o centro.
E Brasília? É curioso, porque não tem muro lá. E como pôde ser dominada desse jeito? Porque é uma visão de futuro muito interessante proposta ali. Parece que os seres que ali habitam e habitaram não eram os convidados daquele lugar.
Quem planejou Brasília, Lúcio Costa e o [Oscar] Niemeyer, não levaram em conta que os muros estão nas estruturas profundas do pensamento brasileiro. Você pode fazer a cidade mais aberta que quiser e vai ter muro lá. As pessoas levam o muro na cabeça delas. Nós brasileiros somos incapazes de viver sem muros. Nós fomos criados nas senzalas, nas reduções, aí é que se formou o caráter nacional brasileiro. Mesmo quem veio de famílias estrangeiras depois chegou aqui e encontrou os muros feitos, os muros ideológicos, culturais. Abrir as paredes implica uma revolução. Fernando Henrique Cardoso disse num trabalho de 1970, um livro coletivo que foi publicado pelo Paulo Sérgio Pinheiro: o grande problema do Brasil é que o Brasil não fez uma revolução da independência. É o único país das Américas.
A independência do Brasil foi feita pelo herdeiro do rei de Portugal, foi feita pelo Estado. O Estado fez a independência do Brasil. E depois criou a sociedade, diferentemente de outros países. Você pensa no modelo da Revolução Francesa, é a sociedade que criou o Estado. No México, a sociedade criou o Estado, nos Estados Unidos. No Brasil o Estado criou a sociedade. Essa é a cruz que nós temos de carregar. Se a gente não se der conta disso e não criar [condições]... Eu não estou falando de revolução de sair dando tiro, matando gente, mas a grande revolução que revoluciona as mentalidades, e isso não está sendo feito. A escola não prepara para isso. A universidade não está preparando quadros para o pensamento crítico, porque sem pensamento crítico não se faz revolução. Uma revolução implica quebrar as estruturas interpretativas para poder descobrir onde está a saída. Isso é pensamento crítico. Esta poderia ser a hora, não vai ser.
Simon Plestenjak/UOL
Por quê?
Porque não temos as mediações. Os partidos são incompetentes e não conseguem perceber isso. Escrevem-se e publicam-se livros sobre isso, ninguém lê, mil pessoas [leem], isso não é suficiente. E o que é uma grande pena: se você abre a boca, as pessoas te censuram imediatamente.
Eu passei a sofrer, nos últimos anos, o cala-boca, aqui mesmo dentro da universidade. Fui dar uma aula magna, a convite da Faculdade de Filosofia, a minha boca foi calada por um grupo que reivindicava que eu não fizesse a minha conferência e falasse sobre cotas raciais. Só que eu não poderia falar sobre cotas raciais se não fizesse críticas à ideologia subjacente, e nunca faria a conferência por imposição de um grupo que me dava um cala-boca e acusava todo mundo.
Mas não aconteceu só aqui [na USP]. Fui fazer uma palestra em São Caetano [do Sul, onde o próprio Martins nasceu, no ABC paulista] sobre um assunto totalmente diferente, idem, tinha um grupo lá em nome da educação impedindo que eu falasse. "Então vocês estão impedindo que a educação fale", disse. Agora, em Rio Grande [da Serra, Grande São Paulo], também não foi possível fazer palestra.
Mas por que o senhor ficou identificado como alguém contrário [a lutas sociais]? O senhor nunca se opôs a nada.
Eles não me identificam, não sabem quem eu sou. É uma aversão ao pensamento crítico. Eu não posso ser crítico em relação às suas ideias, ou às ideias dele, nem você pode ser em relação às minhas ideias. Temos de ser críticos em relação às ideias em geral. As suas, as minhas. Onde é que estão os nossos impasses? Quando é que a gente empacou e não consegue ir para a frente? De onde vêm essas referências que nos aprisionaram num imobilismo brutal? Quando vai, vai num episódio, não vai em outras coisas. É isso que a gente tem de saber.
Outros professores têm tido problemas na universidade. Essa coisa de calar a boca do professor, se ele não fizer o discurso politicamente correto, o que em geral não tem nada a ver com ciência, tem a ver com ideologia. Eu nunca vivi isso, nem durante a ditadura.
O senhor estudou muitos movimentos sociais, a gente vê hoje movimentos novamente pela igualdade de gênero, as mulheres protagonistas, o movimento negro, afrodescendente também falando mais ou querendo seu espaço e o senhor pontuou alguns episódios com esses movimentos reagindo. De que forma poderia dizer, "Olha, gente, eu não sou contra, nós não somos contrários"?
É muito positivo o surgimento de todos esses movimentos dos chamados grupos particulares, que não são uma classe social, que começam dizendo, "Nós existimos, nós estamos aqui". As populações indígenas inauguraram isso no Brasil, nos anos 1970, durante a ditadura. E fizeram isso com um jeito absolutamente lindo e eficiente. Nos anos 1970 houve a revolta dos índios Kaingang. Os Kaingang estão distribuídos por uma imensa área que vai de São Paulo até a Argentina. Eles descobriram que o território deles era arrendado pela Funai [Fundação Nacional do Índio] para os fazendeiros e eles, Kaingang, eram empregados dos fazendeiros.
Mas a terra era deles pela Constituição. Eles resolvem se levantar, com porrete, com enxada, com o que eles tinham. Primeiro, agradecem as professoras que a Funai tinha enviado: "Obrigado, vocês estão dispensadas. Daqui para a frente vamos ter professores Kaingang nas escolas Kaingang. As crianças têm que aprender a língua Kaingang, pensamento Kaingang".
Depois botaram todos os fazendeiros e sitiantes para fora, que é quando nasce o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. Originalmente, é um grupo que teve de cair fora, expulso pelos Kaingang. E a coisa se espalhou por Santa Catarina, Paraná, só em São Paulo não teve. E eles conseguiram se modernizar em termos de economia agrícola, trabalhar com máquinas etc. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul é a única que tem um programa interessante de cotas, porque faz o vestibular separado para os índios. Os índios estão mandando os seus filhos para a universidade porque querem médicos, engenheiros, professores Kaingang, que dialoguem com a cultura deles, os costumes agrícolas, a medicina deles. Vai me dizer que a medicina dos laboratórios é necessariamente muito melhor do que o benzimento de um pajé? Hoje, os jovens Kaingang entram na universidade por uma porta para eles e vão fazer os mesmos cursos que os outros estão fazendo.
Reprodução/Survival International
Índígena do povo Kaingang: luta preservou cultura e direitos
As figuras que o senhor encontrou, algumas figuras que foram decisivas para dar aquela abertura para o mundo, o senhor consegue lembrar quem foi? Esses encontros?
Fiz pesquisas com crianças na Amazônia. Quando estava conversando com as pessoas [adultas], me dei conta de que as crianças, porque criança não opina, não dá palpite, isso é muito comum na nossa sociedade, notei que elas ficavam observando e ouvindo tudo. Então resolvi fazer uma parte da pesquisa com elas. Só crianças. Nas áreas em que havia muita violência contra os pais delas. Essas crianças me revelaram o que era a Amazônia, o restante também ajudou, mas as crianças... A criança é também uma analisadora da realidade, a gente não valoriza isso, mas ela é. E elas tinham uma interpretação.
Uma das pessoas que falou comigo logo no começo, quando soube que eu estava fazendo pesquisa [na Amazônia], é um sujeito aí de São Bernardo [do Campo, no ABC paulista] chamado Lula [Luiz Inácio Lula da Silva]. Ele soube, por meio de uma conhecida dele, e eu não conhecia o Lula, apesar de eu ser do ABC também [nasceu em São Caetano, em 1938]. Que ele gostaria de conversar comigo. Não era político ainda, não tinha o PT, tinha o sindicato [dos Metalúrgicos do ABC, do qual foi presidente nos anos 1970]. Eu fui e passamos uma tarde inteirinha.
Como foi?
Foi interessantíssimo. Ele era o aluno que eu gostaria de ter tido aqui na universidade. Muito inteligente, presta uma atenção incrível, ouve e só faz as perguntas quando as dúvidas se apresentam. Era o aluno ideal para uma universidade. Passamos uma tarde inteira tomando café, saí verde de lá. Conversamos numa casa paroquial, não foi nem no sindicato, nada disso. Na casa do padre, que era amigo dele, em São Bernardo. Uma tarde inteirinha conversando.
O que ele quis saber?
O que estava acontecendo no campo e especialmente na Amazônia. Ele não sabia nada sobre a Amazônia. [O encontro] Foi tão genuíno que ele sugeriu para a CUT [Central Única dos Trabalhadores]: "Vocês têm que conversar com esse cara". E a CUT me chamou. Passei um dia inteiro dando curso sobre os problemas do campo, não só da Amazônia, as dificuldades e extensões dos conflitos.
O Lula é um homem da cultura oral. É um grande ouvinte e tem uma senhora memória. É o que eu digo: é o aluno que queria ter na sala de aula. Eu tive excelentes alunos, não estou subestimando. Hoje vários são professores universitários e grandes pesquisadores. Mas ele é o aluno que faltou na universidade, o tipo do aluno, de mentalidade, o tipo de preocupação, a competência para ouvir e entender. Isso eu tenho bem presente.
Geralmente tentam classificar o Lula: "Ah, nunca se interessou pela educação". Ou: "Nunca cuidou da sua formação". Esse tipo de molde que tentam colocar serve para ele?
É injusto, isso. Essa coisa de chamar o Lula de ignorante, analfabeto, não é verdade. Ele disse uma vez que tinha dificuldade para ler, ele ficava muito cansado. Isso é próprio do aluno excepcional, no sentido de excepcionalmente bom, quer dizer, com QI [quociente de inteligência] mais alto que a média. Esses alunos sempre têm dificuldades de leitura. Sempre têm. Eles não têm paciência. Porque o professor está aqui e eles já estão lá adiante. Eles conseguem entender o código da informação que você está dando. O Lula é desse tipo.
O senhor quer dizer que ele é um aluno de altas capacidades?
Sim. Ele é. O QI dele é muito acima do QI do PT. Por isso, ele está num ponto, assim em termos de quando a opinião pública se manifesta, lá adiante e o PT está aqui atrás. O PT não entendeu o Brasil como o Lula entende. Eu compartilho com os desembargadores lá do Rio Grande do Sul [que condenaram Lula em segunda instância, no caso do tríplex em Guarujá (SP)], quando um deles chamou a atenção para isso. Quer dizer, num certo momento, o Lula se desviou. Mas não foi o Lula que se desviou, foi o poder que o desviou. O poder é maléfico, o poder é oportunista, não é compatível com grandes projetos de nação, projetos intelectuais etc. Foi uma pena, uma grande perda para o Brasil.
E a Dilma foi o grande equívoco do Lula. Ela não era mulher para aquela função. Não estou dizendo que ela não devesse e tal, mas não era ela. Ela foi um calço que o PT colocou no processo político para segurar o lugar para o Lula voltar. Na reeleição dela, o Lula já intuiu que havia mais gente interessada no poder e não estava interessada nele no poder. Que foi isso que aconteceu [com o impeachment]. A voracidade de poder é nociva a um país que está em trânsito, como o nosso. Um país que está tentando chegar a algum lugar.
Folhapress
Lula participa de manifestação durante a greve dos metalúrgicos, em 1980
Dois governos Lula, depois ele fez a sucessora e talvez já preparasse uma volta. A Dilma manteve mais ou menos o mesmo sistema, algumas figuras que permaneceram, algumas coisas que vimos observando. Essa tentativa de permanência sempre, é positiva para o país?
Não, não é.O Brasil tem que aprender a reconhecer a importância democrática da alternância de poder. Nós não temos isso.O Fernando Henrique teve. Eu observei atentamente o processo político brasileiro desde que Fernando Henrique foi eleito.
Não só o Fernando Henrique, mas também a Ruth [Cardoso (1930-2008), antropóloga, professora da USP e mulher de FHC], que tinha grande sensibilidade antropológica para o processo político. Ela percebeu isso. Ela dá um tratamento para a Marisa [Marisa Letícia Lula da Silva (1950-2017), primeira-dama nos governos Lula] que uma rainha dá para a outra. Foi um gesto de grande respeito por ela.
Nas eleições presidenciais de agora, como o sr. vê a pré-candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB)?
O Alckmin cometeu erros enormes. O primeiro foi entrar na guerra contra Serra [José Serra, hoje senador por São Paulo]. Os dois deveriam ter compreendido que tinham que fazer uma aliança aqui. Eles não precisam de inimigos aqui. Demorou muito [para um acordo].
Depois, cometeu o erro de lançar o [João] Doria para a prefeitura. Doria não é do ramo. E eles não perceberam que a votação do Doria, eleito em primeiro turno [prefeito], não foi do Doria, foi contra o PT. O eleitor brasileiro faz muito esse tipo de coisa por falta de esquemas de autodefesa. Aí o Doria acreditou que era o escolhido da população. Por um desses milagres inexplicáveis, ele seria o rebento, o ungido, o escolhido do povo. Ele vai ver agora, se for candidato a alguma coisa. Na verdade, ele se contrapôs ao Alckmin e o enfraqueceu. Foi esse o erro do Alckmin. Agora, o eleitorado mudou, cada geração é uma geração, e esses erros vão pesar negativamente. Mas pode ser que Alckmin tenha chance.
O senhor tem estudo bastante bom sobre misticismo na política, do poder, os messias. A gente tem um "messias" agora até no nome, Jair Messias Bolsonaro [PSC-RJ].
Esse messias não cola. Deus não está disponível para ser usurpado. É um equívoco, das igrejas que o estão apoiando, acho ruim essa coisa de igreja se meter em política partidária, não deveria. Bolsonaro não percebeu que não representa nada. Ele representa a caricatura do autoritarismo.
Karl Marx [estudioso crítico do capitalismo, base de preceitos do comunismo] escreveu um livro que se chama "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte". O Luís Bonaparte era sobrinho do Napoleão querendo imitar Napoleão. Marx diz: "A história não se repete senão como caricatura". Esse aí é a caricatura da ditadura militar. E general não bate continência para sargento [Bolsonaro é capitão reformado do Exército, de patente mais baixa, portanto]. Esse é um detalhe importantíssimo.
Para encerrar, existe algum princípio condutor, algo que pudéssemos visualizar na história brasileira, alguma coisa com que a gente pudesse contar nossa história do início ao fim? Ou esse fio não existiu ainda? Uma ausência, uma presença?
Existe uma coisa que é muito nossa e muito mal trabalhada, que é uma espécie de obsessão pela esperança. O brasileiro pode estar na pior, ele nem usa essa palavra esperança, mas ele não abre mão da convicção de que amanhã vai ser diferente de hoje. A aposta que os grupos populares fizeram na educação, desde o fim do século 19, é uma coisa surpreendente. A grande luta do ABC, que é o ABC operário, não foi sindical, não foi por salário, foi por escola. Eu fui filho dessa escola.
Simon Plestenjak/UOL
Martins e o jardim interno da sociologia da USP
*Colaborou Fernando Couri